domingo, 20 de julho de 2008

Livro III Poema 50

Conta quem aos mortos ouviu a descrição,
que a passagem se dá por um túnel vazio
com uma ténue luz ao fundo, que a passagem alumia.
Terão os vivos morrido como eu vivo a morte neste dia?
Sendo este tempo, o tempo igual ao da salvação,
sendo que a morte não é mais que uma encenação,
serei um vivo esquecido pelo transporte encomendado,
vivendo aqui o que viveria já no outro lado,
uma transição, uma espera, um estágio,
num vazio de tudo, numa enxurrada de breu, um plágio.

Entretenho-me a dar esperanças ao relvado,
se a Câmara Municipal não baixar a tarifa da água,
há sempre o recurso às chuvas outonais, a morte não é um fado,
e digo isto alto, para me fazer ouvir pela frágua
que em mim arde e forja o fio da lâmina do pensamento.

Anseio tanto que escureça para ter como companhia
a luz intensa do poste da rua, e mais a luz da Lua
ambas, e eu, e o relvado ressequido, morto sem ter morrido,
faremos da festa da anunciação a esperança da ressurreição,
o meu olhar cruzando o teu, os dois clareando a escuridão.


Joaquim Marques